segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Nina

Chico poderia mesmo ir a Moscou. E quem sabe não foi? Mas após ter lúcida e alucinadamente descoberto essa mais fecunda, acolhedora criatura, ele quer é usufruir de sua real presença. Exagera tristezas. Falta muito ainda para defini-la. De início eu apenas ia seguindo a trama daquela melodia, daqueles olhos, daquele piano, daquela pele, daquela letra, daquela Rússia... E eis que num rompante Nina para mim se revela tão mais que em cores de olho ou tez, canção, paisagens de google earth. Hoje a ouvi-la meu ciúme é bem menor. Nesse disco Chico canta para Aurora, Glorinha, Aurélia, e outras. Não me iludo. Na presença de Nina sinto que só ela é real.

(Mário Montaut)

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

“Sem você 2”: silêncio

Uma coisa é ouvir música. Outra é ouvir a intensa vaia de uma platéia enraivecida diante do piano fechado de John Cage querendo demonstrar a importância de uns poucos minutos de silêncio. Em “Sem você 2”, do álbum “Chico”, é silêncio que se ouve. Chico Buarque é silencioso. Não só em silêncios de pausa. Silêncio mesmo; real, encarnado. Da carne do silêncio sei que existe e habita essa canção. Não é a tristeza dela o que mais me toca, mas o silêncio que a faz possível. Para “tornar o pensamento visível”, René Magritte elide dos seus temas os elementos excessivos, buscando evocar um “silêncio mental” em quem contempla suas telas. A solidão de Chico ouvindo “uma nuvem a vagar no céu”, ou “uma lágrima a cair no chão” são imagens de Magritte. Silêncio. E no conjunto dessas imagens ouço o músico num domingo olhando o mar e as ondas. Chico. Magritte. Telas mais que visões; canções do silêncio. Algumas cantadas e pintadas por ambos, num silêncio de parcerias inevitáveis.


(Mário Montaut)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

“Se eu soubesse”, do cd “Chico”

Ouvindo “Se eu soubesse”, de Chico Buarque, na voz de Chico e Thais Gulin, fico imaginando como Chico consegue ser tão igual, tão simples e perfeitamente igual à uma ida à praia, a um banho de chuva ou de mar, a um namoro, à uma briga amorosa, à uma conversa de bar, à uma trova antiga, a um gingado de saia, à uma donzela dormindo nua, à uma cabeça na lua, igual a tudo o que na vida vale a pena. Como é que Chico pode ser tão maravilhosamente igual e soar com tamanho frescor, medieval, atual; e para isso não conheço ainda nenhum estudo, nenhuma crítica, senão as dicas de Jorge Luis Borges em seu conto “A Memória
De Shakespeare”, onde ele nos faz saber de uma sociedade universal secreta de indivíduos que recebem e doam a memória de Shakespeare (sic!), a qual passa a irromper nos modos mais imprevisíveis. Chico, com certeza, é membro dessa comunidade, e possuindo a memória de Shakespeare tenta sempre retransmiti-la. Pode ser que haja alguma técnica envolvida nessa magia, e talvez ela nos tenha sido sugerida também por Borges, num outro conto intitulado “Pierre Menard, Autor do Quixote”, onde entre outras coisas, Jorge nos fala com humor e afeto das minúcias pertinentes a questões autorais. Mas o que Chico nos revela nessa canção é que tais fenômenos e técnicas correlativas só existem para quem atua nos domínios do amor.

(Mário Montaut)

domingo, 7 de agosto de 2011

“Sinhá” faz mal

“Sinhá” é tão bela que, bem se enfatize: “faz mal”. Perto dessa pérola cristã o sadomasoquismo de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em “Assum Preto” (a famigerada ave dos olhos cegados), parece delicadeza. Com o negro escravo de “Sinhá” condenado à cegueira pelo senhor de engenho, a perversão de Bosco e Buarque vai mui além. E se a maldade de tantos brancos ainda é infinita, as chantagens sentimentais de “Sinhá” não têm limites.

Em tempo:

Também do álbum “Chico” ouvi dezenas de vezes “Querido Diário”. Manoel de Barros, inspirador da canção, diz que é santidade.

(Mário Montaut)

Clube da Esquina

O extremo requinte na Bossa Nova de Tom Jobim e João Gilberto, a Canção de Protesto de Geraldo Vandré, a Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos, a Crítica Radical Tropicalista de Caetano Veloso e Gilberto Gil. E eis que surge um Clube Da Esquina, que de tão harmônico em sua síntese de riquezas não foi suficientemente notado em sua infinita amplitude inovadora. Falar sobre o Clube Da Esquina? Talvez verdade que Minas seja um reino à parte, e que a excessiva seriedade da música popular brasileira precisava de outras graças naquela América ditatorial e louca por decretos. Clube Da Esquina... Imagens do cinema choviam naquelas canções, os acordes simples do rock inglês e as melodias circulares de influência celta casavam muito bem nos ares medievais da tradição mineira, e os cantos de Lumiar eram bênçãos nos conflitos do samba contra a guitarra contra o barquinho. Clube Da Esquina? Em meio às tentativas de estudo de sua singularíssima musicalidade, Milton Nascimento continua sendo um maravilhoso enigma, para Lô Borges e Beto Guedes algumas canções dos Beatles ainda são experiências religiosas possíveis, e de Belo Horizonte um sabiá atravessa Penny Lane sem sustos. Agora, se tudo isso não for bem verdade, que estejam reforçados o mistério e o convite para ouvi-lo na voz de Ana Lee.

(M.M. e I.V.)